Não há nada mais gentil e singelo que um músico afinando o instrumento. As mãos que apertam as cordas, levemente, ou, que com uma pequena chave, tornam a pele de um tambor mais firme e seca. Às vezes com força, às vezes suave, mas sempre caçando tirar do seu instrumento um som que se perfaça, que dê à canção um fulgor ímpar.
O músico trata o seu instrumento como a extensão de seu corpo. E este o é. É através dele que expressa tudo aquilo que não é capaz de expressar por si só. O instrumento é o emissário da emoção presa no coração do seu guia. Mas, o ser humano, o homem, é morto. Simples fruto de matéria-prima que jaz. E por mais tempo que dure a sua vida útil, um dia será jogado fora, enterrado.
E é nisso que me detenho. No músico afinando o instrumento. O homem e o poeta. Detenho-me nisto mais do que na poesia. O carinho e a destreza, o absoluto e a firmeza. O tocador e o instrumento parecem gozar, em meio ao amor e a beleza dos seus tons e harmonias. Parece este querer livrar aquele da prisão da escala natural. Quer mostrar-lhe o mundo,
dos compassos atonais, das diatônicas e dissonantes, harmonias ressoantes que transformam o tocar. É a forma de arte mais próxima do amor. Não tocar, mas afinar. Não a poesia, mas o poetizar.
Às vezes cordas quebram. Já vi uma cítara desafinar. E é possível que um instrumento assim continue a tocar. Há quem toque um violão até com menos cordas. Mas ouvir, ninguém quererá. Os mais doutos diriam que um instrumento desafinado não traz emoção. Mas é ele quem leva o tocador a realizar a mais fina obra. A celebração de elevar a sua própria alma num instrumento em afinação. O homem e o poeta. Depois, a poesia.