6

VIVA-ME

Eu quero decifrar-te,
comer-te com farinha.
De todas mais gostosa,
de todas a rainha.

A sempre inimiga,
caminho que não vinga,
mistério não sabido,
magia desta vinda.

Quero odiar-te,
cada dia mais.
Como possível sempre fosse,
provar que sou capaz.

Fugir de ti, meu lema.
Caridade alguém te faça.
Sentar-se ao teu lado,
morrer em teu abraço.

Não seja o meu dilema
preocupar-me com a presença,
da minha inimiga,
invicta e infinita.

Ser forte pra vencer.
E enquanto vida ainda ter,
terei destino, o enquanto, a sorte,
de nem que seja por encanto,

fugir da Morte.

5

Não há nada mais gentil e singelo que um músico afinando o instrumento. As mãos que apertam as cordas, levemente, ou, que com uma pequena chave, tornam a pele de um tambor mais firme e seca. Às vezes com força, às vezes suave, mas sempre caçando tirar do seu instrumento um som que se perfaça, que dê à canção um fulgor ímpar.

O músico trata o seu instrumento como a extensão de seu corpo. E este o é. É através dele que expressa tudo aquilo que não é capaz de expressar por si só. O instrumento é o emissário da emoção presa no coração do seu guia. Mas, o ser humano, o homem, é morto. Simples fruto de matéria-prima que jaz. E por mais tempo que dure a sua vida útil, um dia será jogado fora, enterrado.

E é nisso que me detenho. No músico afinando o instrumento. O homem e o poeta. Detenho-me nisto mais do que na poesia. O carinho e a destreza, o absoluto e a firmeza. O tocador e o instrumento parecem gozar, em meio ao amor e a beleza dos seus tons e harmonias. Parece este querer livrar aquele da prisão da escala natural. Quer mostrar-lhe o mundo,
dos compassos atonais, das diatônicas e dissonantes, harmonias ressoantes que transformam o tocar. É a forma de arte mais próxima do amor. Não tocar, mas afinar. Não a poesia, mas o poetizar.

Às vezes cordas quebram. Já vi uma cítara desafinar. E é possível que um instrumento assim continue a tocar. Há quem toque um violão até com menos cordas. Mas ouvir, ninguém quererá. Os mais doutos diriam que um instrumento desafinado não traz emoção. Mas é ele quem leva o tocador a realizar a mais fina obra. A celebração de elevar a sua própria alma num instrumento em afinação. O homem e o poeta. Depois, a poesia.

4

Você

Perfume dos cabelos,
Sonífero certeiro.
As curvas da cintura,
Remédio que tortura.

A voz suave e doce,
Ouvido alimentando,
Um rosto tão formoso
A mim alice-ando

Os olhos de pantera,
Querer-te quem me dera…
Coragem de uma fera
Com ares de quimera.

Revira-te na cama
Intentas e me tenta,
Sentindo o teu aroma
Proclamas a tormenta.

Jejum de imperfeição.
Horário que não muda.
Estreita exatidão,
Na vida confabula.

Ítrio que colore,
Sangrando o coração
Espécie exata e rara,
Amor por invenção.

3

Tenho babado demais.

É que muita coisa ultimamente tem me deixado boquiaberto. E eu sou lerdo. Não consigo controlar. Quando menos espero, babo.

Outro dia, vi uma velhinha atravessar a rua. Observa-a ao longe, protegido. E ela, como alguém que é vigiado, olhava constantemente para todos os lados, como se quisesse provar alguma coisa. E a cada passo que dava, mais boquiaberto eu ficava. Era meu grito de guerra, minha torcida.

O sinal abriu e ela ainda não havia chegado. Eu poderia sair, mas permaneci lá, concentrado no meu alvo. Esperando e pensando em como eu serei quando chegar a esta idade. Como os objetivos minguam… Atravessar a rua. Não cagar nas calças. Beber água sem canudo. A idade em que evitar já é mais que suficiente. É o passado pré-infantil retornando ao presente. No meu caso, futuro. E, espero eu, longínquo.

Quando o pé de Maria (quis chamá-la assim), todo carcomido pela doença chamada tempo, tocou o meio-fio, eu já não focava mais em seus intentos. Estava ensaiando a minha velhice, na cabine do carro, todo babado.

2

Ribeirão das almas

Sequência de mortes didática.
Em rio de dor não se nada.
Poesia que mente e ilude.
Ornada, caminha enfadada.

Caatinga alimenta a mata,
E a morte se vinga exata.
Em meio ao sol quente, rachada,
Terra se imagina molhada,

Esperando o encontro das águas
Que vem inundar sua raiz.
As mortes apalpa, amarga.
Ao vivo colore em matiz.

Os quatro elementos reúne,
A terra, o fogo e o ar.
E a água, teimosa e indecente,
Provavelmente a falhar.

E a terra a se lamentar.
E o Ribeirão das almas a rir.
E a menina de saia a chorar.
Aterrada, não mais vai fugir.